![]()
wikipedia
Escritor, poeta e dramaturgo, Oscar Wilde, nascido a 16 de Outubro de 1854, escreveu obras que se tornariam clássicos da literatura. Criador do movimento dândi, que defendia o belo e o culto da beleza como um antídoto para os horrores da época industrial, mais do que tudo, Wilde foi caracterizado pela sua paixão pela arte, sendo um dos maiores expoentes do esteticismo, através do qual defendeu a importância da arte em todos os aspectos da vida.
O excerto que partilho é carregado de ironia e humor. Foi escrito com base nos pensamentos do intelectual anarquista Kropotkin. Oscar Wilde demonstra a sua repulsa para com a sociedade vitoriana, cheia de hipocrisia e iniquidade.
«(...) Um indivíduo que tenha de produzir artigos destinados ao uso alheio e à satisfação de necessidades e expectativas alheias, não trabalha com interesse e, consequentemente, não pode por no seu trabalho o que tem de melhor. Por outro lado, sempre que uma sociedade, ou um poderoso segmento da sociedade, ou um governo de qualquer espécie, tenta impor ao artista o que ele deve fazer, a Arte desaparece por completo, toma-se estereotipada, ou degenera numa forma inferior e desprezível de artesanato. Uma obra de arte é o resultado singular de um temperamento singular. A sua beleza provém de ser o autor o que é, e nada tem a ver com as outras pessoas quererem o que querem. Com efeito, no momento em que um artista descobre o que estas pessoas querem e procura atender aos pedidos, ele deixa de ser um artista e toma-se um artesão maçador ou divertido, um negociante honesto ou desonesto. Perde o direito de ser considerado um artista.
A Arte é a manifestação mais intensa de Individualismo que o mundo conhece. Acho-me inclinado a dizer que é a única verdadeira manifestação que se conhece. Em determinadas condições, pode parecer que o crime tenha dado origem ao Individualismo. Para a execução do crime é preciso, no entanto, ir além da alçada própria e interferir na alheia. Pertence à esfera da acção. Por outro lado, sozinho, sem consultar ninguém e livre de qualquer interferência, o artista pode dar forma a algo de belo; e se não o faz unicamente para a sua própria satisfação, ele não é um artista de maneira alguma.
Cumpre observar que é o facto de a Arte ser essa forma intensa de Individualismo que leva o público a procurar exercer sobre ela uma autoridade tão imoral quanto ridícula, e tão aviltante quanto desprezível. A culpa não é verdadeiramente do público. Este nunca recebeu, em época alguma, uma boa formação. Está constantemente pedindo à Arte que seja popular, que agrade à sua falta de gosto, que adule a sua vaidade absurda, que lhe diga o que já lhe disseram antes, que lhe mostre o que já deve estar farto de ver, que o entretenha quando se sentir obeso após ter comido em demasia, e que lhe distraia os pensamentos quando estiver cansado da sua própria estupidez.
A Arte nunca deveria aspirar à popularidade, mas sim o público é que deveria tornar-se artístico. Há nisso uma diferença muito ampla. Se disséssemos hoje a um cientista que os resultados das suas experiências e as conclusões a que chegou deveriam ser de uma tal natureza que não abalassem as noções populares firmadas sobre o assunto, nem contrariassem o preconceito popular ou ferissem a sensibilidade dos que nada entendam de ciência; se disséssemos hoje a um filósofo que ele teria o pleno direito de especular nas esferas mais elevadas do pensamento, conquanto chegasse às mesmas conclusões defendidas por aqueles que nunca reflectiram em esfera alguma – bem, o cientista e o filósofo achariam muita graça a essas sugestões. Mas, alguns anos atrás, tanto a filosofia como a ciência viram-se sujeitas ao brutal controle popular, à autoridade quer da ignorância geral da comunidade, quer do terror e sede de poder de uma classe eclesiástica ou governamental. Evidentemente, conseguimos em grande medida livrar-nos de qualquer tentativa, por parte da comunidade, da Igreja ou do Governo, de interferência no Individualismo do pensamento especulativo, mas ainda persiste a tentativa de interferência no Individualismo da arte da imaginação. Com efeito, ela faz mais do que persistir, é agressiva, ofensiva e embrutecedora.
Na Inglaterra, as artes que melhor resistiram são aquelas pelas quais o público não se interessa. A poesia é um exemplo disso mesmo. Podemos ter uma poesia refinada na Inglaterra porque o público inglês não a lê e, consequentemente, não a influência. O público gosta de insultar os poetas por serem indivíduos singulares, mas uma vez insultados, são deixados em paz. No caso do romance e do drama, artes pelas quais o público tem um real interesse, o resultado do exercício da autoridade popular tem sido completamente ridículo.
Nenhum outro país produz ficção tão mal escrita, obras tão maçadoras e banais na forma de romance, e peças tão estúpidas e vulgares. E é forçoso que seja assim. O padrão popular é de uma natureza tal que nenhum artista consegue atingi-lo. É ao mesmo tempo muito fácil e muito difícil ser um romancista popular. É muito fácil porque as exigências do público quanto a enredo, estilo, psicologia, tratamento da vida e tratamento da literatura estão ao alcance da compreensão mais mediana e do espírito mais inculto. É muito difícil porque, para satisfazer essas exigências, o artista teria de cometer uma violência contra o seu temperamento, teria de escrever não pelo prazer artístico de escrever, mas para o entretenimento de pessoas semi-educadas, e assim reprimir a sua individualidade, esquecer a sua cultura, destruir o seu estilo e renunciar a tudo que lhe seja precioso. No caso do drama, as coisas andam um pouco melhor. O público que vai ao teatro aprecia o óbvio, é verdade, mas não gosta do que é tedioso; e a comédia burlesca e a de farsa, as duas formas mais populares, são formas de arte distintas.
É possível fazer obras agradáveis em condições burlescas e farsescas, e na Inglaterra permite-se ao artista uma liberdade muito grande na criação de obras desse género. É quando se chega às formas mais elevadas do drama que se vêem os efeitos do controle popular. A única coisa de que o público não gosta é da inovação. É extremamente avesso a qualquer tentativa de se ampliar o universo temático na criação, quando, no entanto, dessa constante ampliação depende em larga medida a vitalidade e o progresso da Arte.
O público não gosta de inovação porque a teme. Representa para ele uma forma de Individualismo, uma afirmação por parte do artista de que ele mesmo escolhe o seu tema e o trata como lhe convém. A Arte é Individualismo, e o Individualismo é uma força inquietante e desagregadora. Nisto reside o seu grande valor, pois o que procura subverter é a monotonia do tipo, a escravidão do costume, a tirania do habitual e a redução do homem ao nível da máquina. Na Arte, o público aceita o convencional por não poder alterá-lo, mas não porque o aprecie. Engole os seus clássicos por inteiro, sem saboreá-los. Suporta-os como ao inevitável. E já que não podem digeri-los a seu gosto, ruminam. De modo assaz estranho, ou nada estranho, segundo a visão de cada um, essa aceitação dos clássicos causa um grande mal. Um exemplo disso é a admiração ingénua que na Inglaterra se tem pela Bíblia e por Shakespeare. Quanto à Bíblia, entram em discussão considerações do domínio eclesiástico, de modo que não há por que deter-me nesse assunto.
Mas no caso de Shakespeare é bastante evidente que, na verdade, o público não vê nem a beleza nem as falhas das suas peças. Se lhes visse a beleza, não se oporia ao aperfeiçoamento do drama; se lhes visse as falhas, tampouco se oporia a ele. A verdade é que o público usa os clássicos de uma nação como um meio para deter o progresso da Arte. Degrada os clássicos em autoridades. Utiliza-os como clavas para impedir a livre expressão do Belo em novas formas. Está sempre a perguntar a um autor por que não escreve como algum outro, ou a um pintor por que não pinta como algum outro, esquecido por completo de que, se qualquer um deles fizesse alguma coisa dessa sorte, deixaria de ser um artista.
Uma nova forma do Belo desagrada sobremaneira o público, o qual fica, a cada vez que ela surge, tão irritado e confuso que acaba por empregar duas expressões imbecis – uma, que a obra é completamente ininteligível; outra, que a obra é completamente imoral. O sentido que dá a essas palavras parece ser o seguinte: quando afirma que uma obra é ininteligível, entende com isso que o artista disse ou fez algo de belo e novo; quando descreve uma obra como imoral, entende com isso que o artista disse ou fez algo de belo e verdadeiro. A expressão anterior refere-se ao estilo; a segunda, ao tema. Mas é provável, que o público empregue indiscriminadamente ambos os atributos, à maneira da plebe que atira pedras da calçada.
Não há um só verdadeiro poeta ou prosador deste século, por exemplo, a quem o público inglês não tenha solenemente outorgado diplomas de imoralidade. Esses diplomas praticamente equivalem entre nós ao que na França é o reconhecimento formal por uma Academia de Letras, felizmente tornando desnecessária na Inglaterra a criação de uma instituição para esse fim. Naturalmente, o público é muito imprudente no uso da palavra. Era de esperar que chamasse a Wordsworth um poeta imoral. Afinal Wordsworth era um poeta. Mas é surpreendente que chamasse a Charles Kingsley um romancista imoral. A prosa de Kingsley não era de grande qualidade. Mas esta palavra existe, e o público emprega-a o melhor que pode. Um artista não se deixa, evidentemente, perturbar. O verdadeiro artista é um homem que acredita absolutamente em si mesmo, porque é absolutamente ele mesmo. Mas posso imaginar que – se um artista criasse entre nós uma obra de arte que, imediatamente após seu lançamento, fosse reconhecida pelo púbico, através do seu meio de expressão, a Imprensa pública, como uma obra bastante inteligível e sumamente moral – este artista começaria a questionar seriamente se foi ele próprio na criação dessa obra e, portanto, se ela não lhe seria de todo indigna, ou então de qualidade inferior ou desprovida de qualquer valor artístico.
Talvez tenha sido injusto com o público ao limitá-lo a palavras como “imoral”, “ininteligível”, “exótico” e “doentio”. Há ainda uma outra palavra que ele costuma empregar: “Mórbido”. Não a usa com frequência. O significado dessa palavra é tão simples que tem receio de usá-la. Mas de quando em quando deparamo-nos com ela nos jornais populares. É, naturalmente, uma palavra ridícula para se aplicar a uma obra de arte. Pois o que é morbidez senão um estado emocional que não se pode exprimir? O público é sempre mórbido, pois nunca consegue exprimir coisa alguma. O artista jamais é mórbido. Ele expressa tudo. Está além do seu tema e, através do seu meio de expressão, produz efeitos artísticos e incomparáveis. Chamar mórbido a um artista porque trata do tema da morbidez é um disparate tão grande quanto chamar louco a Shakespeare porque escreveu “O Rei Lear”.
Na Inglaterra, quase sempre, o artista ganha alguma coisa em ser atacado. Fortalece a sua individualidade. Toma-se mais completamente ele mesmo. Os ataques, é claro, são muito grosseiros, impertinentes e desprezíveis. Mas, da mentalidade vulgar e do intelecto suburbano, artista algum espera elegância ou estilo. A vulgaridade e a estupidez são dois factos muito presentes na vida moderna. Nós os lamentamos, evidentemente. Mas são uma realidade. Constituem matéria para estudo, como qualquer outra coisa. Nada mais justo afirmar, em relação aos jornalistas modernos, que eles sempre se desculpam em particular, pelo que escreveram contra esse alguém em público.
Nos últimos anos, acrescentaram-se dois outros adjectivos ao limitado vocabulário de injúrias à Arte que o público tem à sua disposição. Um é a palavra “doentio”; outro, a palavra “exótico”. Esta última expressa meramente a fúria do cogumelo efémero contra a orquídea imortal, extasiante e requintadamente adorável. É um tributo, mas um tributo sem nenhuma importância. A palavra “doentio”, no entanto, admite análise. Com efeito, é tão interessante que aqueles que a usam não sabem o seu significado.
O que significa? O que é uma obra de arte doentia ou sadia? Todos os termos que se aplicam a uma obra de arte, se aplicados racionalmente, fazem referência ao seu estilo ou ao seu tema, ou a ambos. Do ponto de vista estilístico, uma obra de arte sadia é aquela cujo estilo reconhece a beleza do material utilizado, quer esse material seja a palavra ou o bronze, a cor ou o marfim, e usa essa beleza como um factor na criação do efeito estético. Do ponto de vista do tema, uma obra de arte sadia é aquela cuja escolha temática é condicionada pelo temperamento do artista e dele provém directamente. Em suma, uma obra de arte sadia é aquela que apresenta tanta perfeição quanto personalidade. Naturalmente, numa obra de arte não se podem separar forma e conteúdo, pois são sempre uma unidade. Mas, para fins de análise, e esquecendo por um momento a totalidade da impressão estética, podemos separá-las num plano intelectual. Uma obra de arte doentia, por outro lado, é uma obra cujo estilo é evidente, comum e ultrapassado, e cujo tema é escolhido deliberadamente, não porque o artista nele encontre prazer, mas porque acha que o público lhe pagará por ele. O romance popular que o público chama sadio é sempre uma criação completamente doentia; e o que o público chama um romance doentio é sempre uma obra de arte bela e saudável.
É quase desnecessário dizer que não estou, em momento algum, lamentando que o público e a Imprensa pública empreguem inadequadamente essas palavras. Não vejo como poderiam empregá-las no sentido correcto, diante da sua falta de compreensão do que seja a Arte. Estou apenas apontando o emprego inadequado; e quanto à origem dessa inadequação e ao significado que se encontra por trás de tudo isso, a explicação é muito simples. Provém do conceito bárbaro de autoridade. Provém da incapacidade de uma sociedade corrompida pela autoridade em entender ou apreciar o Individualismo. Numa palavra, provém daquela coisa medonha e ignorante que se chama Opinião Pública – bem ou mal-intencionada quando procura controlar a acção, mas infame e de intenções perversas quando procura controlar o Pensamento ou a Arte. (...)»