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Arte Notes.

Anotações artísticas, Ambiente & Direitos Humanos por Ana Branco.

Arte Notes.

Anotações artísticas, Ambiente & Direitos Humanos por Ana Branco.

"Sobre o entendimento humano"

28.10.21

 

Livro

 

«O entendimento, tal como a vista, apreendendo os objectos só pela sua própria luz, não pode deixar de se regozijar com aquilo que descobre e importar-se muito pouco com as coisas que deixou escapar, porque essas lhe são desconhecidas.

Todo aquele que não deseja depender das opiniões que a sorte lhe trouxe, mas se empenha em procurar a verdade, sempre encontrará nessa busca alguma satisfação; e por muito pouco que venha a obter, nunca dirá que perdeu o seu tempo.»


O contexto das afirmações de Locke está na "Carta ao Leitor", um prefácio ao seu livro "Ensaio sobre o entendimento humano", e aconselha a pensar pela própria cabeça e não nos limitarmos a repetir pensamentos alheios.

 

"Farpas"

24.10.21

 

Livro

 

«(...)

Aproxima-te um pouco de nós, e vê. O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os carácteres corrompidos. A práctica da vida tem por única direcção a conveniência. Não há principio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.

O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima abaixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui.

O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguer. A agiotagem explora o lucro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número das escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinhas e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora; a população ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva unicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto a intriga política alastra-se.

O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais. Não é uma existência, é uma expiação. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete que de norte a sul, no Estado, na economia, no moral, o país está desorganizado e pede-se conhaque!

(...)»

in "Farpas", por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão (Junho de 1871).

Figura destacada do século XIX, literário e intelectual português, e, em particular, da Geração de 70, Ramalho Ortigão nasceu no Porto a 24 de Outubro de 1836.

 

Teoria do domínio social

23.10.21

 

Desenho

 

A maioria das formas de conflito e de discriminação podem ser entendidas como consequências da tendência humana de formar hierarquias sociais baseadas em grupos. A teoria do domínio social foi desenvolvida para explicar como as sociedades com excedentes económicos mantêm a estabilidade, isto é, mantêm a forma de hierarquias de domínio baseadas em grupos (Sidanius & Pratto, 1993).

O grupo dominante caracteriza-se por ter um valor social ou político (influência, status social etc.) ou acesso a recursos (habitação, educação ou saúde) bastante superior ou mais positivo em comparação aos demais grupos sociais. De acordo com Pratto et al. (1994), os indivíduos apresentam um traço de personalidade em relação à sua orientação para a dominância social (SDO), definido pela predisposição para as relações intergrupais hierárquicas.

Esta teoria e a sua pertinência social motivaram a realização de vários estudos que mostraram que a SDO está relacionada a ideologias que envolvem preconceito e apoio a políticas chauvinistas, sendo um forte preditor de atitudes negativas para com os direitos das mulheres (Heaven, 1999) dos imigrantes ilegais (Basset, 2010) e dos gays e lésbicas (Whitley & Aegisdóttir, 2000).

Segundo Sidanius, Levin, Federico, e Pratto (2001), em todas as sociedades há sistemas sociais sustentados em hierarquias centradas no sexo e na idade. Assume-se que os adultos têm maior poder sobre as crianças e os jovens, e que a estrutura social tende a favorecer os homens em detrimento das mulheres, atribuindo-lhes maiores níveis de poder social e político. Por outro lado, quando em determinadas sociedades se produzem excedentes económicos, surgem diferenciadores sociais, com base em outros critérios, de carácter aleatório, como “raça”, etnia, cultura, classe social, religião ou orientação política.

Sidanius e Pratto (2004) identificaram três processos que dirigem e mantêm as ditas estruturas: a assimetria comportamental, a discriminação individual e a discriminação institucional. Estes processos são regulados por crenças, valores, estereótipos, atribuições e ideologias que promovem a igualdade ou desigualdade social, fornecendo argumentos e justificativas de carácter moral e intelectual. Ou seja, a ética protestante e o direito à preguiça em relação ao trabalho, o socialismo e neoliberalismo em relação à sociedade.

A assimetria comportamental diz respeito às diferenças no comportamento dos indivíduos em função do grupo social a que pertencem, sejam eles membros de grupos hegemónicos ou membros de grupos desfavorecidos. Em certas situações, os próprios indivíduos pertencentes a grupos desfavorecidos assumem comportamentos e condutas que mantêm e apoiam a sua subordinação social, na medida em que, ao invés de resistir à discriminação e à opressão, tomam medidas que favorecem o sistema de desigualdade.

Na assimetria comportamental, há que se destacar a assimetria ideológica, que se refere ao facto de as atitudes e preferências do grupo dominante estarem fortemente orientadas por valores de dominância social em comparação aos grupos subalternos. A título ilustrativo, Sidanius, Feshbac, Levin, e Pratto (1997) observaram que, no grupo dominante caucasiano, a dominância social estava relacionada ao sentimento patriótico, o que não sucedia com os outros grupos étnicos (asiáticos, hispânicos e africano - americanos), nos quais não se observava nenhuma relação, ou ela era negativa.

A variabilidade de indivíduo para indivíduo no efeito dos mitos legitimados pela justificação do sistema de igualdade-desigualdade, levaram Sidanius e Pratto (1999) a proporem a orientação para a dominância social (SDO) como a predisposição para as relações intergrupais hierárquicas e não igualitárias. Pratto et al. (1994) encontraram relações positivas entre SDO e as medidas de políticas militares e punitivas (por exemplo, pena de morte) e relações negativas com as políticas de promoção de igualdade.

Estudos posteriores mostraram o carácter cultural do suporte da SDO dos mitos legitimadores. Além disso, estudos transculturais mostraram, no âmbito da denominada hipótese da invariância de sexo, que os homens obtêm pontuações mais altas em SDO do que mulheres, o que corrobora o pressuposto da teoria do domínio social sobre a existência de hierarquias universais. De acordo com Jost e Thompson (2000), a SDO pode ser vista como uma medida de justificação do sistema, incluída na teoria geral de Jost e Banaji (1994). Para esses autores, a Teoria da Justificação do Sistema expressa o processo pelo qual diferentes convenções sociais são legitimadas, em detrimento de interesses pessoais e de grupo.

Importa destacar duas das justificativas para a ocorrência deste fenómeno:

1. A justificação do grupo, ou o desejo de desenvolver e manter uma imagem favorável do próprio grupo e dos seus membros;

2. A justificação do sistema, que capta as necessidades psicológicas e sociais para justificar o status quo, considerando-o como algo bom, justo, natural, inevitável e desejável.

Para Jost, Banaji, e Nosek (2004), a orientação para a dominância social descreve as duas razões acima mencionadas. Por um lado, o factor de orientação para a dominância grupal pode ser entendido como uma forma de justificação do grupo. Por outro lado, o factor de oposição à igualdade pode ser entendido como uma forma de justificação do sistema. Estas descobertas levaram a uma ajustamento na definição da SDO, aproximando-a das ideias da Teoria da Justificação do Sistema.

A SDO é o desejo geral de relações desiguais entre grupos sociais, independentemente de envolverem dominação ou subordinação do grupo. Em consonância com essa definição, Overbeck, Jost, Mosso, e Flizik (2004) observaram que os membros de grupos desfavorecidos com valores elevados em SDO adoptaram estilos de justificação do sistema em vez de resistência ao sistema de status quo.

Vários estudos mostram que a SDO está fortemente correlacionada ao racismo clássico (Sidanius, Pratto, & Bobo, 1996), ou com o patriotismo (Sidanius et al., 1997), bem como ao autoritarismo, principalmente à escala Right Wing Authoritarianism (RWA; Halkjelsvik & Rise, 2014). Na mesma linha, observaram-se correlações entre baixas pontuações na SDO e atitudes igualitárias entre homens e mulheres (Lippa & Arad, 1999). Em geral, pessoas com altos valores na escala SDO têm atitudes negativas em relação às pessoas pertencentes a grupos de baixo status ou com pouco poder social (Duckitt, 2006). O mesmo acontece em relação à ideologia de sexo e ao sexismo. Pratto e Walter (2004) consideram o poder como uma variável relevante para a compreensão das relações entre homens e mulheres. De acordo com a teoria do domínio social, a ideologia de género constitui um dos mitos legitimados da desigualdade.

A orientação para a dominância social implica a tendência a preferir relações hierárquicas entre grupos e a considerar os membros do grupo de pertença como superior, pelo que pode ser considerado um dos factores psicológicos que induzem à aceitação dos mitos que legitimam a desigualdade entre géneros. A assimetria de comportamento em grupos desfavorecidos (como no caso das mulheres) implica pessoas, em determinadas circunstâncias, adoptarem papéis submissos e tradicionais (no caso das mulheres, objecto romântico), em vez de resistirem à discriminação e opressão.

Salienta-se que a orientação para a dominância social está associada à cultura e identidade social, e que ambas podem sofrer efeitos em função da qualidade das relações intergrupais. É o caso dos efeitos de mobilidade social, que aumenta o contacto e a competição pelos recursos, podendo levar ao aumento da discriminação e violência. Como teoria integrativa, a teoria do domínio social descreveu como os aspectos da psicologia humana interagem com os sistemas de significado compartilhado e as instituições da cultura para reproduzir a estrutura hierárquica das sociedades. Portanto, a teoria do domínio social faz uma suposição diferente, sobre a estabilidade da hierarquia de domínio baseada no grupo, do que o conceito marxista de revolução, e uma suposição diferente sobre a possibilidade de promover a igualdade através da democracia ou "mudança social" do que muitas ciências sociais fazem.

Como a teoria do domínio social vê as sociedades humanas como sistemas de auto-organização e auto-perpetuação, a sua visão da mudança social é complexa. Sistemas sociais dinâmicos, por definição, têm “componentes” diferentes que se influenciam entre os níveis. Como sistemas dinâmicos, os colectivos humanos devem ser entendidos delineando como os múltiplos níveis de organização - nas hierarquias de dominância baseadas em grupos - interagem. Como muitas teorias das ciências sociais, a teoria do domínio social possui níveis de análise micro (geralmente pessoa), meso (geralmente grupo, instituição ou comunidade local) e macro (geralmente social).

A teoria do domínio social enfatiza as interações entre esses níveis e como eles tendem a consolidar efeitos, reforçar um ao outro, corrigir um ao outro e se ajustar. Teoricamente, é isso que faz as hierarquias de domínio baseadas em grupos funcionarem como sistemas dinâmicos - resistentes a mudanças substanciais na forma, mas suficientemente flexíveis para suportar mudanças na produção económica e nas ideologias e normas culturais.

 

Dia Europeu de Combate ao Tráfico de Seres Humanos

18.10.21

 

Assinala-se hoje o Dia Europeu de Combate ao Tráfico de Seres Humanos. Este crime, complexo na forma como é cometido e organizado e, como tal, complexo de investigar e punir, atinge maioritariamente pessoas que pelas suas características e/ou circunstâncias, se encontram numa situação vulnerável.

A par do aumento exponencial do número de pessoas deslocadas, requerentes de asilo, refugiadas e migrantes, encontram-se pessoas que dentro das fronteiras do seu país, se encontram em circunstâncias de fragilidade económica e social, que as tornam alvo de situações de exploração. A instabilidade política e os conflitos armados, bem como o enfoque no crescimento económico em detrimento do respeito pelos direitos humanos e da proteção de pessoas em situação vulnerável, tornam ainda mais relevante a necessidade e importância de adotar medidas de prevenção, investigação e penalização deste crime, bem como de intervenção e apoio às suas vítimas.

Neste dia, a APAV sublinha novamente a relevância do envolvimento de todas as pessoas na luta contra o tráfico de pessoas. Identificar e denunciar situações de exploração é uma responsabilidade de todos os membros da sociedade. Estar informado/a sobre como identificar uma situações de tráfico e exploração é fundamental para poder contribuir para a denúncia de situações e dar voz a quem não consiga procurar apoio.

Aqui encontra informação sobre tráfico para exploração laboral e indicadores que podem ajudar a identificar uma situação de exploração.

Oscar Wilde e a Arte

16.10.21

 

wikipedia

Escritor, poeta e dramaturgo, Oscar Wilde, nascido a  16 de Outubro de 1854, escreveu obras que se tornariam clássicos da literatura. Criador do movimento dândi, que defendia o belo e o culto da beleza como um antídoto para os horrores da época industrial, mais do que tudo, Wilde foi caracterizado pela sua paixão pela arte, sendo um dos maiores expoentes do esteticismo, através do qual defendeu a importância da arte em todos os aspectos da vida.

O excerto que partilho é carregado de ironia e humor. Foi escrito com base nos pensamentos do intelectual anarquista Kropotkin. Oscar Wilde demonstra a sua repulsa para com a sociedade vitoriana, cheia de hipocrisia e iniquidade.

 

«(...) Um indivíduo que tenha de produzir artigos destinados ao uso alheio e à satisfação de necessidades e expectativas alheias, não trabalha com interesse e, consequentemente, não pode por no seu trabalho o que tem de melhor. Por outro lado, sempre que uma sociedade, ou um poderoso segmento da sociedade, ou um governo de qualquer espécie, tenta impor ao artista o que ele deve fazer, a Arte desaparece por completo, toma-se estereotipada, ou degenera numa forma inferior e desprezível de artesanato. Uma obra de arte é o resultado singular de um temperamento singular. A sua beleza provém de ser o autor o que é, e nada tem a ver com as outras pessoas quererem o que querem. Com efeito, no momento em que um artista descobre o que estas pessoas querem e procura atender aos pedidos, ele deixa de ser um artista e toma-se um artesão maçador ou divertido, um negociante honesto ou desonesto. Perde o direito de ser considerado um artista.

A Arte é a manifestação mais intensa de Individualismo que o mundo conhece. Acho-me inclinado a dizer que é a única verdadeira manifestação que se conhece. Em determinadas condições, pode parecer que o crime tenha dado origem ao Individualismo. Para a execução do crime é preciso, no entanto, ir além da alçada própria e interferir na alheia. Pertence à esfera da acção. Por outro lado, sozinho, sem consultar ninguém e livre de qualquer interferência, o artista pode dar forma a algo de belo; e se não o faz unicamente para a sua própria satisfação, ele não é um artista de maneira alguma.

Cumpre observar que é o facto de a Arte ser essa forma intensa de Individualismo que leva o público a procurar exercer sobre ela uma autoridade tão imoral quanto ridícula, e tão aviltante quanto desprezível. A culpa não é verdadeiramente do público. Este nunca recebeu, em época alguma, uma boa formação. Está constantemente pedindo à Arte que seja popular, que agrade à sua falta de gosto, que adule a sua vaidade absurda, que lhe diga o que já lhe disseram antes, que lhe mostre o que já deve estar farto de ver, que o entretenha quando se sentir obeso após ter comido em demasia, e que lhe distraia os pensamentos quando estiver cansado da sua própria estupidez.

A Arte nunca deveria aspirar à popularidade, mas sim o público é que deveria tornar-se artístico. Há nisso uma diferença muito ampla. Se disséssemos hoje a um cientista que os resultados das suas experiências e as conclusões a que chegou deveriam ser de uma tal natureza que não abalassem as noções populares firmadas sobre o assunto, nem contrariassem o preconceito popular ou ferissem a sensibilidade dos que nada entendam de ciência; se disséssemos hoje a um filósofo que ele teria o pleno direito de especular nas esferas mais elevadas do pensamento, conquanto chegasse às mesmas conclusões defendidas por aqueles que nunca reflectiram em esfera alguma – bem, o cientista e o filósofo achariam muita graça a essas sugestões. Mas, alguns anos atrás, tanto a filosofia como a ciência viram-se sujeitas ao brutal controle popular, à autoridade quer da ignorância geral da comunidade, quer do terror e sede de poder de uma classe eclesiástica ou governamental. Evidentemente, conseguimos em grande medida livrar-nos de qualquer tentativa, por parte da comunidade, da Igreja ou do Governo, de interferência no Individualismo do pensamento especulativo, mas ainda persiste a tentativa de interferência no Individualismo da arte da imaginação. Com efeito, ela faz mais do que persistir, é agressiva, ofensiva e embrutecedora.

Na Inglaterra, as artes que melhor resistiram são aquelas pelas quais o público não se interessa. A poesia é um exemplo disso mesmo. Podemos ter uma poesia refinada na Inglaterra porque o público inglês não a lê e, consequentemente, não a influência. O público gosta de insultar os poetas por serem indivíduos singulares, mas uma vez insultados, são deixados em paz. No caso do romance e do drama, artes pelas quais o público tem um real interesse, o resultado do exercício da autoridade popular tem sido completamente ridículo.

Nenhum outro país produz ficção tão mal escrita, obras tão maçadoras e banais na forma de romance, e peças tão estúpidas e vulgares. E é forçoso que seja assim. O padrão popular é de uma natureza tal que nenhum artista consegue atingi-lo. É ao mesmo tempo muito fácil e muito difícil ser um romancista popular. É muito fácil porque as exigências do público quanto a enredo, estilo, psicologia, tratamento da vida e tratamento da literatura estão ao alcance da compreensão mais mediana e do espírito mais inculto. É muito difícil porque, para satisfazer essas exigências, o artista teria de cometer uma violência contra o seu temperamento, teria de escrever não pelo prazer artístico de escrever, mas para o entretenimento de pessoas semi-educadas, e assim reprimir a sua individualidade, esquecer a sua cultura, destruir o seu estilo e renunciar a tudo que lhe seja precioso. No caso do drama, as coisas andam um pouco melhor. O público que vai ao teatro aprecia o óbvio, é verdade, mas não gosta do que é tedioso; e a comédia burlesca e a de farsa, as duas formas mais populares, são formas de arte distintas.

É possível fazer obras agradáveis em condições burlescas e farsescas, e na Inglaterra permite-se ao artista uma liberdade muito grande na criação de obras desse género. É quando se chega às formas mais elevadas do drama que se vêem os efeitos do controle popular. A única coisa de que o público não gosta é da inovação. É extremamente avesso a qualquer tentativa de se ampliar o universo temático na criação, quando, no entanto, dessa constante ampliação depende em larga medida a vitalidade e o progresso da Arte.

O público não gosta de inovação porque a teme. Representa para ele uma forma de Individualismo, uma afirmação por parte do artista de que ele mesmo escolhe o seu tema e o trata como lhe convém. A Arte é Individualismo, e o Individualismo é uma força inquietante e desagregadora. Nisto reside o seu grande valor, pois o que procura subverter é a monotonia do tipo, a escravidão do costume, a tirania do habitual e a redução do homem ao nível da máquina. Na Arte, o público aceita o convencional por não poder alterá-lo, mas não porque o aprecie. Engole os seus clássicos por inteiro, sem saboreá-los. Suporta-os como ao inevitável. E já que não podem digeri-los a seu gosto, ruminam. De modo assaz estranho, ou nada estranho, segundo a visão de cada um, essa aceitação dos clássicos causa um grande mal. Um exemplo disso é a admiração ingénua que na Inglaterra se tem pela Bíblia e por Shakespeare. Quanto à Bíblia, entram em discussão considerações do domínio eclesiástico, de modo que não há por que deter-me nesse assunto.

Mas no caso de Shakespeare é bastante evidente que, na verdade, o público não vê nem a beleza nem as falhas das suas peças. Se lhes visse a beleza, não se oporia ao aperfeiçoamento do drama; se lhes visse as falhas, tampouco se oporia a ele. A verdade é que o público usa os clássicos de uma nação como um meio para deter o progresso da Arte. Degrada os clássicos em autoridades. Utiliza-os como clavas para impedir a livre expressão do Belo em novas formas. Está sempre a perguntar a um autor por que não escreve como algum outro, ou a um pintor por que não pinta como algum outro, esquecido por completo de que, se qualquer um deles fizesse alguma coisa dessa sorte, deixaria de ser um artista.

Uma nova forma do Belo desagrada sobremaneira o público, o qual fica, a cada vez que ela surge, tão irritado e confuso que acaba por empregar duas expressões imbecis – uma, que a obra é completamente ininteligível; outra, que a obra é completamente imoral. O sentido que dá a essas palavras parece ser o seguinte: quando afirma que uma obra é ininteligível, entende com isso que o artista disse ou fez algo de belo e novo; quando descreve uma obra como imoral, entende com isso que o artista disse ou fez algo de belo e verdadeiro. A expressão anterior refere-se ao estilo; a segunda, ao tema. Mas é provável, que o público empregue indiscriminadamente ambos os atributos, à maneira da plebe que atira pedras da calçada.

Não há um só verdadeiro poeta ou prosador deste século, por exemplo, a quem o público inglês não tenha solenemente outorgado diplomas de imoralidade. Esses diplomas praticamente equivalem entre nós ao que na França é o reconhecimento formal por uma Academia de Letras, felizmente tornando desnecessária na Inglaterra a criação de uma instituição para esse fim. Naturalmente, o público é muito imprudente no uso da palavra. Era de esperar que chamasse a Wordsworth um poeta imoral. Afinal Wordsworth era um poeta. Mas é surpreendente que chamasse a Charles Kingsley um romancista imoral. A prosa de Kingsley não era de grande qualidade. Mas esta palavra existe, e o público emprega-a o melhor que pode. Um artista não se deixa, evidentemente, perturbar. O verdadeiro artista é um homem que acredita absolutamente em si mesmo, porque é absolutamente ele mesmo. Mas posso imaginar que – se um artista criasse entre nós uma obra de arte que, imediatamente após seu lançamento, fosse reconhecida pelo púbico, através do seu meio de expressão, a Imprensa pública, como uma obra bastante inteligível e sumamente moral – este artista começaria a questionar seriamente se foi ele próprio na criação dessa obra e, portanto, se ela não lhe seria de todo indigna, ou então de qualidade inferior ou desprovida de qualquer valor artístico.

Talvez tenha sido injusto com o público ao limitá-lo a palavras como “imoral”, “ininteligível”, “exótico” e “doentio”. Há ainda uma outra palavra que ele costuma empregar: “Mórbido”. Não a usa com frequência. O significado dessa palavra é tão simples que tem receio de usá-la. Mas de quando em quando deparamo-nos com ela nos jornais populares. É, naturalmente, uma palavra ridícula para se aplicar a uma obra de arte. Pois o que é morbidez senão um estado emocional que não se pode exprimir? O público é sempre mórbido, pois nunca consegue exprimir coisa alguma. O artista jamais é mórbido. Ele expressa tudo. Está além do seu tema e, através do seu meio de expressão, produz efeitos artísticos e incomparáveis. Chamar mórbido a um artista porque trata do tema da morbidez é um disparate tão grande quanto chamar louco a Shakespeare porque escreveu “O Rei Lear”.

Na Inglaterra, quase sempre, o artista ganha alguma coisa em ser atacado. Fortalece a sua individualidade. Toma-se mais completamente ele mesmo. Os ataques, é claro, são muito grosseiros, impertinentes e desprezíveis. Mas, da mentalidade vulgar e do intelecto suburbano, artista algum espera elegância ou estilo. A vulgaridade e a estupidez são dois factos muito presentes na vida moderna. Nós os lamentamos, evidentemente. Mas são uma realidade. Constituem matéria para estudo, como qualquer outra coisa. Nada mais justo afirmar, em relação aos jornalistas modernos, que eles sempre se desculpam em particular, pelo que escreveram contra esse alguém em público.

Nos últimos anos, acrescentaram-se dois outros adjectivos ao limitado vocabulário de injúrias à Arte que o público tem à sua disposição. Um é a palavra “doentio”; outro, a palavra “exótico”. Esta última expressa meramente a fúria do cogumelo efémero contra a orquídea imortal, extasiante e requintadamente adorável. É um tributo, mas um tributo sem nenhuma importância. A palavra “doentio”, no entanto, admite análise. Com efeito, é tão interessante que aqueles que a usam não sabem o seu significado.

O que significa? O que é uma obra de arte doentia ou sadia? Todos os termos que se aplicam a uma obra de arte, se aplicados racionalmente, fazem referência ao seu estilo ou ao seu tema, ou a ambos. Do ponto de vista estilístico, uma obra de arte sadia é aquela cujo estilo reconhece a beleza do material utilizado, quer esse material seja a palavra ou o bronze, a cor ou o marfim, e usa essa beleza como um factor na criação do efeito estético. Do ponto de vista do tema, uma obra de arte sadia é aquela cuja escolha temática é condicionada pelo temperamento do artista e dele provém directamente. Em suma, uma obra de arte sadia é aquela que apresenta tanta perfeição quanto personalidade. Naturalmente, numa obra de arte não se podem separar forma e conteúdo, pois são sempre uma unidade. Mas, para fins de análise, e esquecendo por um momento a totalidade da impressão estética, podemos separá-las num plano intelectual. Uma obra de arte doentia, por outro lado, é uma obra cujo estilo é evidente, comum e ultrapassado, e cujo tema é escolhido deliberadamente, não porque o artista nele encontre prazer, mas porque acha que o público lhe pagará por ele. O romance popular que o público chama sadio é sempre uma criação completamente doentia; e o que o público chama um romance doentio é sempre uma obra de arte bela e saudável.

É quase desnecessário dizer que não estou, em momento algum, lamentando que o público e a Imprensa pública empreguem inadequadamente essas palavras. Não vejo como poderiam empregá-las no sentido correcto, diante da sua falta de compreensão do que seja a Arte. Estou apenas apontando o emprego inadequado; e quanto à origem dessa inadequação e ao significado que se encontra por trás de tudo isso, a explicação é muito simples. Provém do conceito bárbaro de autoridade. Provém da incapacidade de uma sociedade corrompida pela autoridade em entender ou apreciar o Individualismo. Numa palavra, provém daquela coisa medonha e ignorante que se chama Opinião Pública – bem ou mal-intencionada quando procura controlar a acção, mas infame e de intenções perversas quando procura controlar o Pensamento ou a Arte. (...)»

 

Foucault

15.10.21

 

wikipédia

«Há dois sentidos para a palavra "sujeito": sujeito submetido a outro pelo controle e a dependência e sujeito ligado à sua própria identidade pela consciência ou pelo conhecimento de si. Nos dois casos a palavra sugere uma forma de poder que subjuga e submete.»

in "Dois ensaios sobre o sujeito e o poder"

Filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France, de 1970 até 1984, Michel Foucault nasceu a 15 de Outubro de 1926.

 

A arte...

15.10.21

 

Agustina Bessa-Luís

 

"A arte não pode ser política, nem sujeição social, nem glosa duma ideia que faz época; nem mesmo pode estar de qualquer forma aliada ao conceito «progresso». É algo mais. É o próprio alento humano para lá da morte de todas as quimeras, da fadiga de todas as perguntas sem solução."

Agustina Bessa-Luís, uma das mais consagradas escritoras da contemporaneidade portuguesa, nasceu a 15 de Outubro de 1922.

 

“O Que é Política”

14.10.21

 

Livro

 

«(…) "Por trás dos preconceitos contra a política estão hoje em dia, ou seja, desde a invenção da bomba atómica, o medo de a Humanidade poder varrer-se da face da Terra por meio da política e dos meios de violência colocados à sua disposição, e — estreitamente ligada a esse medo — a esperança de a Humanidade ter juízo e, em vez de eliminar-se a si mesma, eliminar a política" — através de um governo mundial que transforme o Estado numa máquina administrativa, liquide de maneira burocrática os conflitos políticos e substitua os exércitos por tropas da polícia.

Na verdade, essa esperança é totalmente utópica quando se entende a política em geral como uma relação entre dominadores e dominados. Sob tal ponto de vista, conseguiríamos, em lugar da abolição da política, uma forma de dominação despótica ampliada ao extremo, na qual o abismo entre dominadores e dominados assumiria dimensões tão gigantescas que não seria mais possível nenhuma rebelião, muito menos alguma forma de controlo dos dominadores pelos dominados. Esse carácter despótico não seria modificado pelo facto de não se poder mais descobrir uma pessoa, um déspota no contingente mundial — visto o domínio burocrático, o domínio através do anonimato do bureau, não ser menos despótico pelo facto de 'ninguém' exercê-lo; pelo contrário, é ainda mais terrível porque nenhuma pessoa pode falar com esse 'ninguém' nem lhe apresentar uma reclamação.

Mas, se se entender por 'político' o âmbito mundial no qual os homens se apresentam sobretudo como actuantes, conferindo aos assuntos mundanos uma durabilidade que em geral não lhes é característica, então essa esperança não se torna nem um pouco utópica. (…)»

 

"Escrever é esquecer"

13.10.21

 

 

«Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida — umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.

Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.»

in "Livro do Desassossego" por Bernardo Soares

 

Celebra-se hoje, 13 de Outubro, o Dia Mundial do Escritor.

 

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