Livro XIX
Santo Agostinho
A Cidade de Deus (413-426)
Livro XIX, cap.7: Diversidade de Línguas e Miséria das Guerras
Depois da cidade ou da urbe vem o orbe da terra, terceiro grau da sociedade humana, que percorre os seguintes estágios: casa, urbe e orbe. O universo é como o oceano das águas: quanto maior, tanto mais escolhos. A principal causa da separação entre os homens é a diversidade de línguas. Suponhamos que em viagem se encontram duas pessoas; uma ignora a língua da outra, mas por necessidade têm de caminhar juntas grande trecho. Os animais mudos, embora de espécie diferente, associam-se de modo mais fácil que essas duas pessoas, apesar de seres humanos. E quando, unicamente por causa da diversidade de línguas, os homens não podem comunicar uns aos outros o que pensam, de nada serve para associá-los a mais pura semelhança de natureza. Tanto assim que em tal caso o homem está melhor em companhia de seu próprio cão que de homem estranho. Todavia, dir-se-á, aconteceu que cidade feita para imperar não apenas impôs o jugo, mas também o domínio social e pacífico de sua língua às nações dominadas e tal conquista preveniu a carência de intérpretes. É verdade, mas à custa de quantas e que enormes guerras, de quanta devastação e de quanto derramamento de sangue se conseguiu! Passaram esses males e, contudo, a miséria deles não se acabou. Embora certo que não faltaram, nem faltam, nações estrangeiras inimigas contra as quais se travaram e ainda hoje se travam guerras, a própria grandeza do império deu origem a guerras de pior tipo, às guerras sociais e às civis. Por causa delas o género humano padece tremendos choques, tanto quando se guerreia para conseguir a paz, como quando se teme novo recrudescimento. Se quiséssemos expor como merecem os mil e um estragos produzidos por tais males, suas duras e inumanas crueldades, embora por uma parte me fosse impossível pintá-las, como exigem, qual seria, por outra, o fim de tão prolixas palavras?
O sábio, acrescentam, há-de travar guerras justas. Como se o sábio, cônscio de ser homem, não sentirá muito mais ver-se obrigado a declarar guerras justas, pois, se não fossem justas, não devia declará-las e, portanto, para ele não haveria guerras! A injustiça do inimigo é a causa do sábio declarar guerras justas. Semelhante injustiça, embora não acompanhada de guerra, simplesmente por ser tara humana, deve deplorá-la o homem. É evidente, por conseguinte, que neles reconhece a miséria quem quer que considere com dor males tão enormes, tão horrendos e inumanos. Quem os tolera e considera sem dor é muito mais miserável ao julgar-se feliz, porque perdeu o sentimento humano.
Livro XIX, cap.12: Paz, Suprema Aspiração dos Seres
Quem quer que repare nas coisas humanas e na natureza delas reconhecerá comigo que, assim como não há ninguém que não queira sentir alegria, assim também “não há ninguém que não queira ter paz”. Com efeito, os próprios amigos da guerra apenas desejam vencer e, por conseguinte, anseiam, guerreando, chegar à gloriosa paz. E em que consiste a vitória senão em sujeitar os rebeldes? Logrado esse efeito, chega a paz. A paz é, pois, também o fim perseguido por aqueles mesmo que se afanam em demonstrar valor guerreiro, comandando e combatendo. Donde se segue ser a paz o verdadeiro fim da guerra. O homem, com a guerra, busca a paz, mas ninguém busca a guerra com a paz. Mesmo os que de propósito perturbam a paz não odeiam a paz, apenas anseiam mudá-la a seu talante.
Sua vontade não é que não haja paz, e sim que a paz seja segundo sua vontade. Se por causa de alguma sedição chegam a separar-se de outros, não executam o seu intento, se não têm com os cúmplices uma espécie de paz. Por isso, os bandoleiros procuram estar em paz entre si para alterar com mais violência a paz dos outros. Se existe algum salteador tão forçudo e inimigo de companhia que não confie em ninguém e sozinho assalte, mate e se entregue à pilhagem, tem pelo menos uma espécie de paz, seja qual for, com aqueles que não pode matar e de quem quer ocultar o que faz. Em casa procura viver em paz, com a esposa, com os filhos, com os domésticos, se tem, e gosta de que, sem abrirem a boca, lhe obedeçam à vontade. Se não lhe obedecem, fica zangado, ralha e castiga e, se a necessidade o exige, restabelece com crueldade a paz familiar. Vê a impossibilidade de existir paz na família, se os membros não se submetem ao chefe, que em sua casa é ele. Se alguma cidade ou povo quisesse submeter-se a ele, como desejava lhe estivessem sujeitos os de casa, já não se esconderia como ladrão em nenhuma caverna, mas andaria de cabeça erguida à vista de todos, porém com a mesma cupidez e malícia. Todos desejam, pois, ter paz com aqueles a quem desejam governar a seu arbítrio. E, quando querem fazer guerra a outros homens, querem primeiro fazê-los seus, se podem, para depois impor-lhes as condições de sua paz.
Quem sabe antepor o recto ao torto e a ordem à perversidade reconhece que, comparada com a paz dos justos, a paz dos pecadores não merece sequer o nome de paz. O antinatural ao contrário à ordem há-de necessariamente estar em paz em alguma, de alguma e com alguma parte das coisas em que é ou de que consta. Do contrário, deixaria de ser.
(...)
in "Direitos Humanos. Uma Antologia.
Principais Escritos Políticos, Ensaios e Documentos Desde a Bíblia Até o Presente"