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“Ideologia”, o livro em que Terry Eagleton examina as várias definições sobre o tema e aprofunda a história do conceito.
«(…) O termo ideologia, por outras palavras, parece fazer referência não somente a sistemas de crença, mas a questões de poder.
Que tipo de referência, contudo? Talvez a resposta mais comum seja afirmar que ideologia tem a ver com legitimar o poder de uma classe ou grupo social dominante. “Lsludar ideologia”, escreve John B. Thompson, “é estudar os modos pelos quais o significado (ou a significação) contribui para manter as relações de dominação”. Essa é, provavelmente, a única definição de ideologia mais amplamente aceite, e o processo de legitimação pareceria envolver pelo menos seis estratégias diferentes. Um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores compatíveis com ele; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a torná-las óbvias e aparentemente inevitáveis; denegrindo ideias que possam desafiá-lo; excluindo formas rivais de pensamento, mediante talvez alguma lógica não declarada mas sistemática; e obscurecendo a realidade social de modo a favorecê-lo. Tal “mistificação”, como é comummente conhecida, com frequência assume a forma de camuflagem ou repressão dos conflitos sociais, da qual se origina o conceito de ideologia como uma resolução imaginária de contradições reais. Em qualquer formação ideológica genuína, todas as seis estratégias podem estabelecer entre si interacções complexas.
(…) A ideologia tem mais a ver com a questão de quem está a falar o quê, com quem e com que finalidade do que com as propriedades linguísticas inerentes de um pronunciamento. Não se trata de negar a existência de “idiomas” ideológicos específicos: a linguagem do fascismo, por exemplo. O fascismo tende a ter o seu próprio léxico característico (Lebensraum, sacrifício, sangue e pátria), mas o que há de mais ideológico quanto a esses termos são os interesses de poder a que eles servem e os efeitos políticos que geram. O facto então é que o mesmo fragmento de linguagem pode ser ideológico num contexto e não em outro; a ideologia é uma função da relação de uma elocução com o seu contexto social.
(…) Argumentar a favor de uma definição mais “política” que “epistemológica” de ideologia não significa, é evidente, afirmar que política e ideologia são a mesma coisa. Uma forma de distingui-las seria sugerir que a política se refere aos processos de poder mediante os quais as ordens sociais são mantidas ou desafiadas, ao passo que a ideologia diz respeito aos modos pelos quais esses processos de poder ficam presos no reino do significado. Mas não é bem assim, uma vez que a política tem a sua própria classe de significado, que não precisa ser necessariamente ideológico.
(…) Parte da oposição ao argumento da “falsa consciência” tem origem na alegação, aliás correcta, de que as ideologias, para serem verdadeiramente eficazes, devem dar algum sentido, por menor que seja, à experiência das pessoas; devem ajustar-se, em alguma medida, ao que elas conhecem da realidade social com base na sua interacção prática com esta. Como nos lembra Jon Elster, as ideologias dominantes podem moldar activamente as necessidades e os desejos daqueles a quem elas submetem; mas devem também comprometer-se, de maneira significativa, com as necessidades e desejos que as pessoas já têm, captar esperanças e carências genuínas, reinflecti-las no seu idioma próprio e específico e retorná-las aos seus sujeitos de modo a converterem-se em ideologias plausíveis e atraentes. Devem ser “reais” o bastante para propiciar a base sobre a qual os indivíduos possam moldar uma identidade coerente, devem fornecer motivações sólidas para a acção efectiva, e devem empenhar-se, o mínimo que seja para explicar as suas contradições e incoerências mais flagrantes. Em resumo, para terem êxito as ideologias devem ser mais do que ilusões impostas e, a despeito de todas as suas inconsistências, devem comunicar aos seus sujeitos uma versão da realidade social que seja real e reconhecível o bastante para não ser peremptoriamente rejeitada.
(…) Cada processo discursivo (…) está inscrito em relações ideológicas e será internamente moldado pela sua pressão. A própria linguagem é um sistema “relativamente autónomo”, compartilhado igualmente por operário e burguês, homem e mulher, idealista e materialista, mas, justamente porque forma a base comum de todas as formações discursivas, torna-se o veículo de conflito ideológico.
(… ) a posição de uma formação discursiva dentro de um todo complexo, que inclui o seu contexto ideológico, será tipicamente ocultada do falante individual num acto do que Pêcheux chama “esquecer”, e é por causa desse esquecimento ou repressão que os significados do falante lhe parecem evidentes e naturais. O falante “esquece” que é apenas a função de uma formação discursiva ou ideológica e, assim, vem a reconhecer-se erroneamente como o autor do seu próprio discurso. Mais ou menos como o bebé lacaniano identifica-se com o seu reflexo imaginário, assim o sujeito falante efectua uma identificação com a formação discursiva que o domina. Mas Pêcheux deixa aberta a possibilidade de uma “desiden-tificação” com tais formações, que é uma condição da transformação política.
(…) Se toda a linguagem articula interesses específicos, então, aparentemente, toda a linguagem seria ideológica. Mas (…) o conceito clássico de ideologia não se limita, de maneira nenhuma, ao “discurso interessado” ou à produção de efeitos persuasivos. Refere-se mais precisamente ao processo pelo qual os interesses de certo tipo são mascarados, racionalizados, naturalizados, universalizados, legitimados em nome de certas formas de poder político, e há muito a perder politicamente quando essas estratégias discursivas vitais são dissolvidas em alguma categoria indiferenciada e amorfa de “interesses”. Afirmar que toda a linguagem é retórica em algum nível não é, portanto, o mesmo que afirmar que toda linguagem é retórica.
(…) As ideologias dominantes e, ocasionalmente, as de oposição, muitas vezes empregam dispositivos como a unificação, a identificação espúria, a naturalização, a ilusão a auto-ilusão e a racionalização. Mas não fazem isso universalmente (…)
(…) Nenhum radical que examine friamente a tenacidade e a penetração das ideologias dominantes pode sentir-se esperançoso quanto ao que seria necessário para abrandar o seu domínio letal. Mas há um lugar, acima de todos, em que tais formas de consciência podem ser transformadas, quase literalmente, da noite para o dia, e esse é a luta política. Isso não é uma crendice de esquerda, mas um facto empírico. Quando homens e mulheres, envolvidos em formas locais, inteiramente modestas de resistência política, vêem-se trazidos, pelo ímpeto interior de tais conflitos, para o confronto directo com o poder do Estado, é possível que a sua consciência política seja definitiva e irreversivelmente alterada. Se uma teoria da ideologia tem algum valor, este consiste em auxiliar no esclarecimento dos processos pelos quais pode ser efectuada praticamente tal libertação diante de crenças letais.»